terça-feira, 12 de outubro de 2010

Seu Juca Sem Fio, um andarilho - II

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Anga Mazle . .

No final de março, Tuca, Elza e eu entrevistamos Seu Juca Sem Fio, o andarilho mais culto e misterioso do Rio de Janeiro. Postamos a parte do material gravada no meu MP3, que acabaria pifando durante a entrevista. Ficamos devendo o restante, registrado num velho gravador de rolo emprestado pelo dono do bar em que nos reunimos com Seu Juca, em Vila Valqueire, na Zona Oeste do Rio.

Eu pelejava desde então com essa gravação, na qual as falas de nosso entrevistado estão incompreensíveis, sua voz mais grave e rouca do que de fato é e, estranhamente, fanha. Só neste fim de semana foi possível fazer a transcrição da fita, graças à inestimável colaboração de uma fonoaudióloga especializada em fanhos. Em nome de toda a equipe do desinformação seletiva, muitíssimo obrigada, Dra. Ônhia Inhanhães!

Tuca - O que é a liberdade para o senhor, Seu Juca?

Seu Juca - Uma coisa miúda e informe que incomoda a maioria das pessoas. Bem mais que um cisco no olho... Mas, se fosse preciso, eu daria os meus dois olhos por ela. Mesmo sabendo que essa fulustreca é arisca toda vida, mais escorregadia que lesma no cio... Eu acho que todos deviam se dedicar à sua própria liberdade de corpo e roupa!

Elza – E alma, o senhor quis dizer...

Seu Juca - Eu quis dizer roupa mesmo, pois andar pelado por aí é uma liberdade que dá cadeia. De mais a mais, não creio em alma. Acho até que certa feita eu apalpei uma no cinema. Sei lá, não dou certeza. Estava escuro, e na época eu pouco sabia sobre a anatomia feminina. (Ri, meio envergonhado) Hoje, felizmente, sei menos ainda.

Tuca – Felizmente? O senhor já não se interessa por mulher?

Seu Juca – Que isso! É a única coisa que me interessa. O tempo todo, até quando durmo. Por isso, quanto mais eu conseguir não saber sobre o corpo da mulher, melhor. É território sagrado, morada do mistério mais alto, da irrealidade mais profunda e verdadeira. Não cabe sondá-lo, profaná-lo com as asperezas dos questionamentos e conceitos. É dever do homem tratar essa sabedoria em carne e osso com a ignorância ampla e sedosa dos sonhos nunca dantes sonhados. (Elza e eu não contivemos um suspiro.) Infeliz daquele que percorre com os olhos a vastidão da nudez de uma mulher!

Anga – O senhor não olha para o corpo da mulher com quem transa?

Seu Juca – Se ela estiver nua, jamais! Para me despertar um desejo forte, devidamente incontrolável, a mulher tem de estar vestida de acordo. Um corpo feminino coberto de rendas e cetins fica mais nu, deslumbrantemente nu. A lingerie é o ponto de exclamação da nudez!... E quando esta finalmente nos é oferecida, ou é por nós conquistada, devemos fechar os olhos. Não por pudor, mas para ficarmos cegos. Cegos, compreendem?... Uma mulher nua pode ser vista dos pés à cabeça, de trás para frente, de fora para dentro, de dentro pra fora... mas só em braile!

Tuca – O senhor teve muitas mulheres, certo?

Seu Juca – Nenhuma, não, seu moço. Mas deixei que muitas me tivessem. Muitas. E continuo deixando. Sempre com o mesmo porém: quando elas me dizem... sou sua!.... eu pico a mula.

Anga – Medo, seu Juca?

Seu Juca – Muito. Não se deve ter uma mulher. Porque, assim, sentindo-se pertencida, ela se torna um tormento para si mesma, afunda num desconsolo atroz. É levada a descobrir aquela porção de nada que todos trazem dentro de si e geralmente não sabem, ou fingem não saber. A mulher deixa de ser quem ela era, não tem mais serventia nenhuma, nem para mim nem para si mesma. Como é forte, consegue sobreviver nesse horror anos a fio, a vida toda até. A não ser que você a liberte, livrando-a de você. Ou que ela resolva lhe trair, santo remédio para as asas que ela própria quebrou por você.

Tuca – E o senhor suporta bem isso, a traição?

Seu Juca – Não sei. Como eu disse, nunca fui dono de mulher nenhuma. Acho, entretanto, que deve ser mais fácil suportar o peso de uma galhada monumental do que ver o tempo todo a imagem lúgubre de um rosto feminino apagado, que não consegue mais erguer as comissuras labiais, mantendo a linha da boca emborcada até quando ri, se é que ainda ri. É terrível. Conhecem a Bette Davis?... A Jeanne Moreau?

Tuca – Duas grandes atrizes que adquiriram com o tempo esse desenho labial “emborcado” de que o senhor fala. Gosta de cinema?

Seu Juca – Gostava, gostava bem. Uma pena não haver mais nenhum por aí faz tempo.

Elza – Ainda há muitos, sim. Nos shoppings.

Seu Juca – Os cinemas estão nos shoppings? Que tragédia!... Ou os filmes andam uma bosta só ou, pior, o consumismo se sofisticou.

Elza – O senhor não gosta de shopping?

Seu Juca – Não. E desde o início, desde que os americanos começaram a exportar pro mundo todo essa geringonça monstruosa. Nunca vi um shopping por dentro. Não entro naquilo. De jeito nenhum. Nem morto, amarrado e amordaçado. Em supermercado, também não

Elza – Por quê?

Seu Juca – Ora, sei que não se pode chegar à perfeição, mas pra mim a feira livre era e é a perfeição possível nesse tipo de comércio. Tentaram ir além, deu nisso. Supermercado, shopping... a feira encarcerada! Ainda bem que o povo, para superar as dificuldades impostas pelos doutores da economia e do marquetingue (sic), criou o shopping a céu aberto, as aglomerações de camelôs que estão pintalgando de vida as ruas das grandes cidades.

Anga – Qual o segredo dessas iniciativas populares? Existiria um saber superior, instintivo, maior que o saber da ciência?

Seu Juca A ciência não sabe nada. Tudo que ela pode fazer é colher e distribuir os frutos desse saber instintivo. Mas não, ela não se contenta com isso. Porque é constituída por um grupo, uma espécie de conselho... mau conselho!... que se reúne, amealha todo o saber instintivo recém-surgido e, entre um chazinho com bolacha e outro, fica debatendo o que é melhor, mais adequado para ser aplicado. Quando chegam... quando chegam!... a alguma conclusão, grande parte daqueles saberes já estão se deteriorando! E são esses produtos putrefatos que eles oferecem para consumo da sociedade.

Elza – Mas existem bons cientistas, pessoas criativas e bem intencionadas.

Seu Juca – Esses não são cientistas.

Anga – São o quê?

Seu Juca – Poetas, moça. E não há lugar para eles no “conselho”. Não que o conselho não os queira, eles é que não querem o conselho. Sabem que o conselho é a morte, enquanto a eles só interessa a vida, mesmo quando falam da morte. O poeta é um indivíduo. Ainda existem indivíduos, sabiam? São poucos, mas existem.

Anga – Só os poetas são indivíduos?

Seu Juca – Só.

Tuca – E os andarilhos, eles não são indivíduos?

Seu Juca – Eu sou. E os outros, provavelmente, também são. Sei lá. Não posso falar por eles, ser o porta-voz de uma categoria cuja virtude maior é justamente não se constituir como tal, é ser um todo feito de cada um por si e estamos conversados. Nada a ver com individualismo, hem! O individualista só existe no seio do grupo. Se não integramos grupo algum, podemos ser indivíduos. Não queremos impor nada à sociedade ou mesmo a outro indivíduo. Nossa filosofia se resume a um conceito que dispensa desdobramentos analíticos.

Elza – Qual é?

Seu Juca – Eu não encho o teu saco, tu não enches o meu.

Tuca – Se a seu ver só os poetas são indivíduos e o senhor diz que é um indivíduo, logo o andarilho seria também um poeta...

Seu Juca – Um poeta. Sim, todo andarilho é um poeta. Mas nem todo poeta é um andarilho. Assumidamente, quero dizer. Porque na essência eles o são, embora talvez sem se dar conta de que estão tão próximos desse estágio superior de vida. Nós, mais do que esses que teimam em ser poetas não-andarilhos, respeitamos a alergia purulenta que nos causa a convivência em família, turmas, associações, religiões, partidos políticos, reuniões de condomínio, etc.

Elza – O senhor acredita que a vida seja possível sem essas corporações?

Seu Juca – A vida não depende das corporações, elas é que dependem da vida, parasitando-a, sugando sua poderosa energia. Veja o caso dessa turma que luta pela preservação do meio ambiente. Que pretensão! Se julgam capazes de deter o rumo inexorável da história. A arrogância das arrogâncias! São tão estúpidos quanto os donos do poder, os que trabalham pelo fim da humanidade a curto prazo. Mas esses, pelo menos, merecem a minha admiração, por estarem agilizando, ainda que inconscientemente, uma vida melhor para o planeta, que enfim poderá se ver livre do Homem, esse lastimável produto da evolução patológica da ameba!

Tuca – E o senhor não vê nenhuma saída?

Seu Juca – Saída... saída....

(Seu Juca olha nos olhos do Tuca, mas focando seu olhar muito além do Tuca. De repente, desvia os olhos para fora do bar, como se tivesse avistado qualquer coisa lá no fim da rua. Enquanto nos viramos para olhar na mesma direção, ele se levanta. E sai, descendo a rua até a última esquina, onde dobra e desaparece. Demos por encerrada a entrevista. Tinha outra saída?)

Leia a primeira parte da entrevista, aqui.

Ilustração: do blog do artista plástico Hélio Jesuíno, aqui.

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36 comentários:

lilialvestilo disse...

Por estas e outras que acredito muito na rua.
;)

Maria Janice disse...

Vou me debruçar com mais calma depois. Mas até aqui, fantástico. Tem um elenco de sabedoria em cada fala. Vou fazer ganhar mundo, repassando.

Anônimo disse...

"Eu não encho o teu saco e tu não enches o meu", kkk. Vale por toda a moral.

Maria Janice disse...

Tuca:

Lisonjeada com teu dedicadíssimo comentário e passeio pelo meu universo.
Seja bem-vindo! E orgulhosa de ser seguida por ti e Anga.
A propósito de nunca teres tido brinquedinhos, é porque és do grupo que não 'dá em árvore'. rsrsr
Logo, és do grupo exceção!
beijo.

Willy disse...

Un blog inmenso.
Pena de no saber portugés.

Unknown disse...

Quase um filósofo. É, a rua ensina cara!

Zélia Guardiano disse...

Show, o Seu Juca!
Demais!
Adorei esse andarilho filósofo...
Abraço, Anga!

Anônimo disse...

Caracaaaa!
Acho que é por isso, que dizem por aí, que a melhor faculdade é a da vida.
BeijO*

Cinzia Procopio disse...

Hola Anga,
muchas gracias por tu visita, tu comentario y por seguirme. No hablo portugués pero lo entiendo y lo leo con facilidad. Muy buena esta entrevista!. Voy a tratar de tener un diccionario a mano para no perderme y responderte como corresponde: en portugués.
Recibe un abrazo,
Cinzia

Maria Regina Lemos disse...

Tão boa como a primeira parte. Não dá para fazer uma terceira, quarta, quinta...?

Beijo

Antonio Alves disse...

Grande Seu Juca!

Me lembrou meu avô, que semprer dizia toda vez que alguém falava "não sei":

- Não sabe? Então vai andar, vai!

Beijos

Lupe disse...

KKKKKK Cheio das tiradas finas o Seu Juca, Anga!
Ri muito com o que ele fala das mulheres, da ciência e dos ecologistas. Demais!

Beijos

Unknown disse...

qué hermoso blog amiga brasilera!! saludos

Anga Mazle disse...

A rua e a estrada são fundamentais, Lilian. Mesmo as esburacadas!
Beijos

Obrigada, Janice. Seu blog me encantou também.
Beijos

Pois é, Luiz Fernando. Nada mais justo e libertário.
Beijos

Repassarei sua informação ao Tuca, Janice. Ele vai adorar saber que não é um vegetal!
Beijos

Anga Mazle disse...

Obrigada, Willy.
Beijos

Que não tem amarras, pensa mais livremente, Fred.
Beijos

Eu também o adoro, Zélia.
Beijos, querida!

Só é, Blogger Poupée Amélie! Beijos

Bem-vinda, Cinzia. Acho que a tradução on line já facilita bem. Pra mim, resolve, se bem que a uso pouco para ler espanhol.
Beijos

Anga Mazle disse...

O que sobrou na edição é muito pouco e fragmentado para fazermos uma nova postagem, Regina. Mas quem sabe não conseguimos encontrar e conversar outra vez com o Seu Juca?
Beijos

Seu avô sabia das coisas, Antonio. Os avós, em geral, já caminharam muito...
Beijos

Você leu a primeira parte da entrevista, Lupe? Se não leu, corra lá. Tenho certeza que você vai amar!
Beijos

Gracias, Juliano!
Bezos

Mendonça disse...

Ótimo o Seu Juca aqui, como na primeira parte da entrevista.

Um abraço

Regina Conde disse...

Que figura maravilhosa! Grande entrevista vocês fizeram, Anga!

Beijo

Ira Buscacio disse...

Anga,

Olha que maravilha se todos adotassem esse sábio conceito.
Eu não encho o teu saco, tu não enches o meu!

Bravo a todos os Jucas

Bjão aos 4 loucos adoráveis

Luis Paulo Quintela disse...

Incrível, sensacional! Seu Juca caminha anos-luz a frente de nós, Anga!

Beijos

Anga Mazle disse...

Você não perde o pique, Mendonça. Sempre conferindo tudo!
Beijos

Tão simples, né, Ira? Por que será que a gente complica tanto?
Distribuirei seus beijos para o pessoal.
Beijos

Tratemos de correr atrás, Luis Paulo!
Beijos

Marcel Zaner disse...

Tô com o seu Juca. Grupo é sempre um estorvo para a liberdade, mesno quando têm como objetivo lutar por ela. São inevitáveis, necessários em alguns casos, mas quem entra de corpo e alma neles, esfola o corpo todo e enruga a alma!

Abraço

Americo Gentil disse...

Sensacional entrevista!

Um ser muito especial o Seu Juca!

Abraço

Anga Mazle disse...

É isso mesmo, Marcel. Tem que saber participar sem comprometer a liberdade essencial; conceder sem se lambuzar, sem perder pedaços.
Beijos

E bota especial nisso, Americo!
Beijos

Juliana disse...

Maravilhoso! Curti muito a sabedoria e senso de humor do andarilho.

Um beijo

Aragonesa disse...

Quem anda sozinho nunca está a sós com a pessoa errada.

Brilhante o Seu Juca!

Bjs

Aline Chaves disse...

A perspectiva de quem está sempre em movimento, sem vínculos com os lugares e grupos sociais, deve ser fantástica. Pode perceber com facilidade o que está estagnado ou podre... e passar reto, sem se contaminar.

Beijo

Lucia Alfaya disse...

Ah como eu gostaria que alguém me olhasse com os olhos de seu Juca e se dedicasse a ler-me em braile!
Simplesmente genial! Lembrei-me do Profeta Gentileza. Parece que o Rio é pródigo em figuras assim... sábias, misteriosas, poetas!

Anga Mazle disse...

Nós também, Juliana. Seja bem-vinda!
Beijos

Boa reflexão, Aragonesa. Seu Juca concordaria, creio.
Beijos

Sim, Aline, acho que é isso que estimula os andarilhos a nunca desistirem da sua jornada solitária.
Beijos

Que mulher não gostaria, Lucia?
Acho que pessoas como o Gentileza e o Seu Juca existem por toda parte. Talvez aqui no Rio a presença delas apenas ganhe mais destaque.
Beijos

Ellen disse...

viva a sabedoria dos andarilhos!!!

bjs

Simone.sissagyn disse...

No mínimo sensacional!!! Bom passar por aqui!

Anga Mazle disse...

Viva!!!
Beijos, Ellen!

Obrigada, Simone. Volte sempre!
Beijos

Gi disse...

Hahahahaha morrendo de rir aqui! Sinceramente, Tuca, seu blog além de muito criativo é um remédio eficaz contra o baixo astral!

um SALVE à Juca Sem Fio!!


beijosssssss

Suzana Guimarães disse...

Seu Juca,

Um conhecedor de mulher e poesia. Disse toda a verdade. Vivas a ele!

Beijos à equipe!

Adriana_ disse...

Que maravilha! Quanta sabedoria, simplicidade... Reli trechos e fiquei comovida com o Seu Juca. Me permitam comentar algo pessoal: tenho vivido dias de caos e conhecer seu Juca Sem Fio hoje trouxe consolo a meu espírito. Que maravilha pessoas assim! Encantada! Parabéns pelo Blog, que estou conhecendo! Abraços a todos!
Ah, obrigada Anga Mazle!!!

Bell reis disse...

Apaixonei, só não vou dizer ao seu Juca,(senão ele vai embora)
Se ela estiver nua, jamais! Para me despertar um desejo forte, devidamente incontrolável, a mulher tem de estar vestida de acordo. Um corpo feminino coberto de rendas e cetins fica mais nu, deslumbrantemente nu. A lingerie é o ponto de exclamação da nudez!... E quando esta finalmente nos é oferecida, ou é por nós conquistada, devemos fechar os olhos. Não por pudor, mas para ficarmos cegos. Cegos, compreendem?... Uma mulher nua pode ser vista dos pés à cabeça, de trás para frente, de fora para dentro, de dentro pra fora... mas só em braile!(Depois, quero reler! Amei!)Queria um "seu Juca" pra mim